Produtos e sociedade — Uma correlação posta em segundo plano

Criar produtos é movido, em grande parcela, por interesses financeiros. Mas quais os impactos sociais estamos gerando para a nossa comunidade com o que estamos produzindo?

Josenildo Amorim
4 min readNov 9, 2020
Famoso cruzamento no bairro de Shibuya, em Tokyo, Japão

Estamos na chamada era da “pós-verdade”, onde o apelo emocional e crenças pessoais tem mais valor que fatos. Desde 2016, na eleição americana que elegeu Trump como presidente, vimos o uso das redes sociais como arma de criação e propagação das tão faladas fake news. O termo e a prática perduram até hoje e é extremamente mal visto — inclusive pelos seus maiores divulgadores pelo mundo afora.

Na época, a postura das redes sociais — gigantes como Facebook e Twitter — era a omissão. A liberdade de expressão era um pilar a não ser questionado jamais, mesmo com os mais distorcidos fatos mudando os rumos da sociedade.

Quando foi criada, a internet trouxe um contexto de um espaço igualitário onde todos têm voz. Mas no entanto olhando de perto cada vez tem se mostrado um espaço caótico e sem controle. E sem diminuir desigualdades, dado que ainda hoje não é acessível para todos. E, quando acessível, não há um movimento de inclusão digital satisfatório para uso das ferramentas.

Onde nós entramos nisso?

Me lembro em 2018, quando participei do Scrum Gathering no Rio, e assisti a palestra da Gabriella Guerra, na época co-presidente da Thoughtworks, onde ela falava sobre justamente essa conexão entre tecnologia e a sociedade. Na época com quase 8 anos de carreira eu nunca tinha parado pra pensar e nem tinha ouvido falar sobre essa correlação — tão óbvia e ao mesmo tempo tão esquecida.

Me lembro de uma frase que ela trouxe:

“Desenvolvimentos tecnológicos frequentemente têm consequências ambientais, sociais e humanas que vão além do propósito imediato (…) A mesma tecnologia pode ter resultados diferentes quando introduzida em diferentes contextos ou sob diferente circunstâncias.” — Melvin Kranzberg

Isso me faz pensar sobre os produtos que temos em nossas mãos hoje em dia. Podemos não estar inseridos em ambientes tão influenciadores sociais como o Facebook ou o Twitter, mas cada produto rodando hoje tem um impacto para quem o usa.

Por exemplo, o produto que estou inserido hoje tem um propósito de facilitar pequenos empreendedores na entrada digital e proporcionar a eles a criação fácil de um canal de comunicação digital com seus clientes. Mas, por mais legal que seja esse propósito, o produto ainda sim pode ser usado para fins negativos. Já tivemos casos passados de clientes que o utilizaram para criar websites fraudulentos, prejudicando uma série de pessoas que foram lesadas por aquilo.

O ponto que eu quero chegar aqui é algo que também foi dito pelo Melvin Kranzberg na primeira de suas leis:

“A tecnologia não é boa, não é ruim e nem é neutra."

Em 2020 o cenário tem mudado bastante do que foi visto em 2016. Os gigantes como Facebook e Twitter declararam guerra as fake news, por estarem na mira de governos mundo afora, além da pandemia e as graves consequências que a negligência de se omitir poderia ter, dado que se trata de uma questão de saúde pública. Agentes governamentais por todo o mundo também têm se posicionado e tentado combater a desinformação com dados factuais pelo mesmo canal que as fake news circulam — os digitais.

Então, o que se pode observar é que, por si só, a tecnologia não é um agente de mudança. Nós, motores humanos e pensantes por trás dela que temos um papel social de direciona-la para algo novo, algo bom. Ou então algo ruim.

Consciência social ao criar produtos

Recentemente conversei com uma amiga que negou uma vaga de grande prestígio porque ela não acreditava no produto, que era voltado para o agronegócio. Ela acreditava que aquele produto poderia ter um impacto social nocivo. As perguntas que ela se fez ficaram na minha cabeça e vou deixar aqui para que, quem sabe, fique na de vocês também:

O que aconteceria com produtos concebidos para atender práticas nocivas se nós, product managers/owners e desenvolvedores, negássemos a trabalhar com eles? Muitos de nós estamos em uma posição de privilégio hoje devido ao mercado que estamos inseridos dispor sempre de muitas vagas. Temos mesmo que aceitar trabalhar em qualquer produto? Vale tudo?

Sempre ouvi muito que grande parte do papel de um product manager é saber dizer não. Temos muitas prioridades no dia a dia e não podemos fazer tudo o que nos é direcionado. Então podemos exercitar esse poder do não também para manter nossos produtos focados em um propósito social além do financeiro.

A feature ou produto que você pretende lançar, quais são suas possibilidades de uso? Se ela tem alguma possibilidade nociva ou que fomente algum tipo de dano a uma parcela social, vale a pena ser lançada? Existe uma alternativa?

Tenha claro os valores que pretende passar a frente em seus produtos. Qual valor é inegociável para você? É mais que apenas uma decisão ou uma priorização, é uma responsabilidade social.

Referências:

https://www.infoq.com/br/presentations/keynote-tecnologia-e-sociedade-quem-salvara-quem/

https://www.vqronline.org/essay/technology-history-and-culture-appreciation-melvin-kranzberg

https://olhardigital.com.br/noticia/facebook-e-twitter-reforcam-acoes-contra-fake-news-em-eleicoes-dos-eu/105179

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Josenildo Amorim

PM @ FARFETCH . LGBT. Masters in Information Science @ UPORTO . Posgraduate in History, Philosophy and Sociology. Sometimes i have something to write about.